A COP16 em Cali e a voz retumbante das ONGs
A COP16 em Cali, marcada pela influência crescente das ONGs e pela consolidação dos “direitos da natureza”, revela uma agenda que questiona o papel do desenvolvimento e da soberania nacional em países amazônicos
A COP16 em Cali, marcada pela influência crescente das ONGs e pela consolidação dos “direitos da natureza”, revela uma agenda que questiona o papel do desenvolvimento e da soberania nacional em países amazônicos
Ao ler o jornal A Crítica de Manaus, constatamos tendências preocupantes que se consolidaram na COP16, realizada recentemente em Cali, na Colômbia, para discutir o tema da biodiversidade. Em uma reportagem intitulada “COP16 reconhece indígenas e quilombolas como protetores da biodiversidade”, Cley Medeiros, sob a etiqueta de “Conquista”, apresenta um tom positivo em relação ao evento. A reportagem foi financiada por uma bolsa da Earth Journalism Network, que recebe apoio de várias fundações, incluindo Ford, Daniel K. Thorne, Arcadia, OAK, CIRF, Rockefeller Brothers Fund, Wilson Center e também da Comissão Europeia. Medeiros, que também colabora com o portal ativista Amazônia Real e é editor de conteúdo da Mídia Ninja, reforça o discurso de valorização dos povos tradicionais na conservação ambiental.
Na linha-fina, a reportagem destaca: “Na prática, nenhuma decisão da COP da Biodiversidade da Organização das Nações Unidas (ONU) daqui para frente será tomada sem a opinião e votação de povos indígenas e quilombolas”. No entanto, a reportagem carece de uma análise crítica sobre a viabilidade dessa premissa. A “participação indígena”, como fica evidente na reportagem, é majoritariamente mediada por entidades privadas e organizações não governamentais (ONGs). Em nossa matéria sobre a ONG Amazon Watch, observamos sua atuação como articuladora de delegações de ativistas indígenas em eventos internacionais, como as COPs, e esse papel foi mantido nesse evento. Além de organizar a pauta e agenda das delegações, ONGs como a Amazon Watch preservam seus próprios interesses, pois, com o discurso de direcionar recursos “diretamente” para as comunidades locais, são essas organizações privadas, geralmente pequenas ONGs subsidiárias de organizações internacionais, que acabam recebendo esses recursos. Na COP16 foi criado o Fundo Florestas Tropicais para Sempre.
Monitor das ONGs: Quem Vigia os Vigilantes?
Medeiros relata que “foi definido que 50% dos recursos deste novo fundo devem ser destinados a projetos e à implementação de políticas de defesa e conservação da biodiversidade com ampla participação”. Ele acrescenta que o documento menciona “financiamento direto como forma de reparação histórica”, uma colocação “inédita para um documento oficial do sistema ONU”. A novidade aqui reside no fato de que, enquanto o subdesenvolvimento dos países colonizados era anteriormente visto como um problema humano e histórico que exigia grandes investimentos em infraestrutura, cancelamento de dívidas opressivas e combate ao protecionismo injusto, agora a “reparação histórica” é direcionada ao financiamento de pequenos projetos ongueiros que têm como objetivo manter a Amazônia em seu estado atual.
Razan Al Mubarak, presidente da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN), presente em Cali, saudou a criação do novo fundo. A IUCN, uma das primeiras ONGs conservacionistas, com sede na Suíça, possui vínculos significativos com a WWF, reforçando assim a conexão de grandes ONGs com as pautas de preservação da COP.
A justificativa ideológica para o estabelecimento desse esquema lucrativo para as ONGs, além do próprio discurso ambientalista, é a ideia de que fóruns internacionais devem transcender os estados-nação e envolver diretamente as chamadas “partes interessadas” (chamadas de stakeholders), o que, na prática, fortalece grandes organizações privadas e distancia esses fóruns de um debate político transparente e democrático.
Contribuição para a Polêmica da Exploração de Petróleo no Amapá
Indiretamente, o autor faz uma breve contribuição à polêmica sobre a exploração de petróleo na costa do Amapá, mencionando a necessidade de “proteção” para o “litoral da Amazônia”. Além disso, nota-se um tom de otimismo em relação à colaboração entre Brasil e Colômbia, em conjunto com fundações privadas. No último parágrafo, ele escreve: “A colaboração com o Instituto Humboldt e outras entidades latino-americanas reflete a urgência de uma ação conjunta entre Brasil e Colômbia para preservar a biodiversidade regional”.
Como vimos, um conjunto de figuras públicas brasileiras unem-se a uma frente informal na defesa da exploração do petróleo na margem do Amapá, para que assim os recursos sirvam para combater a pobreza na região. Do outro lado, uma frente ainda mais poderosa se articula em fóruns internacionais, como foi o caso na COP 16.
A Natureza como “Sujeito de Direito”
Nos últimos anos, a ideia dos “direitos da natureza” tem ganhado força nas discussões ambientais e jurídicas. Esse conceito propõe que elementos naturais — como animais, plantas, rios e ecossistemas — sejam tratados como sujeitos de direito em si mesmos, com valor intrínseco, independente da sua relação com os seres humanos. Esse movimento, defendido por figuras políticas e ativistas ambientais, busca garantir direitos próprios à natureza, como evidenciado na proposta de Emenda Constitucional (PEC) apresentada pela deputada federal Célia Xakriabá e pelo Partido Verde no Brasil.
Essa ideia é abordada em outra matéria de Cley Medeiros para o A Crítica, intitulada “Quais são os caminhos que a COP16 oferece para a Amazônia?”. De novo, a reportagem se pauta em especial a partir do contato com as ONGs presentes na COP, e um destaque central é a proposta de “direitos da natureza”. Na matéria, o tema é introduzido através de Iremar Ferreira, do Instituto Madeira Vivo, que foi para a COP através da comitiva da “Articulação Internacional da Natureza”. Embora haja poucas informações públicas sobre o Instituto Madeira Vivo, a posição foi apresentada por meio de uma carta do Fórum Social Amazônico, uma grande conferência de movimentos sociais financiada por institutos internacionais.
A ideia dos direitos da natureza representa uma mudança radical em relação ao Direito Ambiental tradicional. Enquanto este foca na proteção da natureza para assegurar um ambiente saudável para os humanos, os direitos da natureza tratam cada elemento natural como “sujeito de direito”. A questão que surge é: quem falará em nome de um rio, uma floresta ou uma espécie de animal?
Conceder direitos a uma floresta ou a um rio implica a necessidade de que alguém, um “representante legal”, fale em nome desse ser natural. No entanto, quem decide o que é “melhor” para um rio? O que uma floresta “deseja”? Essa atribuição de direitos aos elementos naturais, na prática, exigirá que representantes humanos interpretem e falem por esses seres, correndo o risco de projetar valores e interesses humanos sobre a natureza, o que esvazia o propósito original dos “direitos da natureza”. Além disso, podemos supor que, nas atuais condições, os porta-vozes seriam, novamente, representantes de ONGs e suas subsidiárias (“movimentos sociais”).
Ademais, como lidar com conflitos entre os direitos dos seres humanos e os “direitos” da natureza? Se uma determinada obra de infraestrutura é necessária para o desenvolvimento de uma comunidade, mas impacta um rio, quem deve prevalecer? Como decidir o peso dos direitos de cada um? Nós já temos como critério evitar certos impactos sobre o meio ambiente, agora imagine que a implementação de um projeto energético com potencial de transformar a vida de uma população inteira seja suspensa não por considerações ambientais, mas por causa de um princípio que entende que o impacto ambiental viola o direito fundamental de um rio a uma existência imperturbada. A mineração, a agricultura e outras atividades essenciais para a economia do país poderiam enfrentar restrições severas, aumentando a insegurança jurídica e prejudicando o desenvolvimento de diversas regiões, sobretudo da Amazônia.
O conceito de “direitos” carrega consigo uma carga moral e jurídica desenvolvida ao longo dos séculos para seres conscientes, capazes de entender e reivindicar esses direitos. Os direitos dependem de uma percepção de dignidade. A introdução desses conceitos em seres que não possuem agência levanta dúvidas sobre a validade e a coerência dessa abordagem. É necessário, então, se agarrar ao direito das pessoas e as pessoas têm direito ao desenvolvimento.
Influenza Colombiana, Influência das ONGs
A ambição da Colômbia de assumir uma posição de liderança ambiental tornou-se uma política de Estado que transcende ideologias. Tanto o governo de centro-direita de Juan Manuel Santos quanto o de esquerda de Gustavo Petro sustentaram essa visão, destacando a crescente influência das ONGs. Enfraquecido por décadas de conflitos armados e pelo narcotráfico, o Estado colombiano abriu espaço para que organizações internacionais moldassem políticas ambientais, privilegiando a preservação em detrimento de outras demandas sociais.
A nomeação de Martin von Hildebrand para presidir a Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA) é um reflexo dessa tendência. Figura de destaque no ambientalismo colombiano, Von Hildebrand foi pioneiro na criação de redes de ONGs ambientalistas com financiamento estrangeiro e, enquanto estava no governo, articulou políticas para a criação de zonas de conservação indigenistas com fortes restrições à atividade humana. Foi ele que formulou a concepção do “Corredor Triplo A”, que atravessa os Andes, passa pela Amazônia e chega ao Atlântico, visando criar uma ampla zona de proteção ambiental e indígena.
A Colômbia foi também uma das primeiras nações a adotar formalmente a ideia de “direitos da natureza”. Em 2016, a Corte Constitucional colombiana declarou que “o homem pertence à terra, como qualquer outra espécie” (Sentença T-622). Com a justificativa de que um Estado plural deve respeitar as cosmovisões indígenas, a Corte criou áreas de autonomia indígena com restrições ambientais rigorosas, refletindo as políticas de Von Hildebrand. O argumento é que um Estado plural e diverso deve respeitar as cosmovisões indígenas, criando áreas de autonomia indígena com rígidas restrições ambientais. Com pouco debate — político e jurídico — a corte suprema usou a lógica de que, se alguma cosmovisão indígena entende que a natureza é um sujeito, eles podem extrapolar o fato para a ideia de que existe a visão na sociedade da “natureza como sujeito de direito” e então essa visão é constitucional; em seguida, extrapolam o caráter constitucional da tal visão para justificar políticas de “direitos da natureza” muito além dos espaços habitados por indígenas.
Efetivamente, esses provimentos legais colombianos surgem em um país que já tem o seu campo fragmentado pela presença de diversos grupos armados, politizados ou não, que atuam nas economias paralelas do narcotráfico e da mineração. Contudo, a visão que se espalha pelo interior do sistema colombiano é agora projetada na arena internacional, na COP. Devemos atentar para as políticas que vêm sendo defendidas pela Colômbia e entender que a COP de Cali prepara a pauta da COP de Belém. A ideia de “direitos da natureza”, ao restringir o uso e a interação humana com a natureza em nome de um ideal de preservação, corre o risco de impor uma visão rígida e contrária à realidade social dos países amazônicos.
Editorial