A força da burrice

Vejam vocês a força da burrice. Com uma simples e sucinta resposta, a autoridade referida explicou todo o lúgubre insucesso brasileiro na Copa de 66.

A força da burrice

A fina ironia de Nelson Rodrigues se mistura com a crítica direta e a celebração orgulhosa do futebol nacional

Amigos, aprendo muito na Grande resenha da TV Globo. Cada noite dominical é, para mim, e há de ser para a cidade, uma luminosa e tremenda lição de vida. Mal comparando, a nossa mesa tem um formidável valor simbólico. Somos, ali, o Brasil. Não exagero e repito: — assim como o Gonçalo Mendes Ramires representava Portugal, nós representamos esta grande e comovente pátria. Ainda ontem, soube eu de uma que considero uma página divina. Imaginem vocês que participou da Resenha, excepcionalmente, um colega paulista; e ele fez uma revelação maravilhosa. Em suma: — contou que um dos nossos paredros, explicando a ausência do futebol brasileiro no Pan-Americano, declarou o seguinte, dois-pontos: — “O nosso futebol não tem nenhuma chance.” Vejam vocês a força da burrice. Com uma simples e sucinta resposta, a autoridade referida explicou todo o lúgubre insucesso brasileiro na Copa de 66. Como poderíamos vencer na Inglaterra se um dos nossos dirigentes acredita, e piamente, que temos possibilidades em qualquer outra modalidade esportiva, menos no futebol? O pobre-diabo ainda não desconfiou que somos os bicampeões do mundo; que Pelé é brasileiro; e que uma das poucas coisas que funcionam no Brasil é, precisamente, o futebol.

Ao ouvir tamanha insanidade, um colega rosnou, ao meu lado: — “Se até o futebol brasileiro não presta, vamos fechar o Brasil.” Mas pergunto: — que fazer contra a burrice? Desconfio que não há reação possível. Na ignominiosa Copa, até os paralelepípedos de Boca do Mato sabiam que o Brasil precisava de um time. Não se joga futebol sem um time. Pois bem: — nas barbas indignadas de oitenta milhões de brasileiros, não se fez nada. O Brasil não teve, jamais, em momento nenhum, um mísero time. Agora, oficializa-se a mentalidade segundo a qual não há futebol por aqui. Somos ótimos em peteca, bola de gude, cuspe à distância, menos de bola. Mas não foi só, amigos, não foi só. Em dado momento, um dos meus companheiros de canto toma a palavra e declara o seguinte: — na Copa do Mundo, Pelé foi muito bem-tratado, não sofreu nenhuma violência. Vejam vocês e pasmem: — Pelé tratado, na Inglaterra, a pires de leite como uma gata de luxo. Portanto, o videoteipe é um vigarista; idem o cinema; idem a crônica mundial. A imagem mostra o crioulo ceifado, exterminado por trás. Cai, na primeira agressão; levanta-se, para ser derrubado outra vez. Tudo pelas costas. E vem um colega e afirma: — “Não houve nada disso. É mentira do videoteipe, do cinema, das fotografias e do próprio olho humano.” Mas justiça se faça à maioria da Resenha. Ao ouvir tal iniquidade, cada um de nós se levantou com a ira de um Zola. Na sua indignação cívica, companheiros subiam pelas paredes como lagartixas profissionais. Eu estava vendo a hora em que íamos, todos, cantar o Hino Nacional. 

Nelson Rodrigues para O Globo, 25/04/1967. Título sugerido pela edição do livro Brasil em campo (Nova Fronteira, 2012). A crônica foi publicada originalmente na coluna “À sombra das chuteiras imortais” sem título.

Publicado em "A Pátria de Chuteiras", Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2013, pp. 130-131.