Defender a Amazônia não é ideologia

Portal ambientalista acusa críticos de ONGs de "conspiracionismo", trivializa as necessidades de segurança do Brasil e diz que "ideologia dos militares" é responsável por problemas da Amazônia

Defender a Amazônia não é ideologia
Foto: Exército Brasileiro

Portal ambientalista acusa críticos de ONGs de "conspiracionismo", trivializa as necessidades de segurança do Brasil e diz que "ideologia dos militares" é responsável por problemas da Amazônia

Na seção “Diário de Guerra” do portal Sumaúma, um artigo assinado por Rafael Moro pretende explicar “Como a ideologia dos militares moldou a Amazônia de hoje”. O texto abre citando uma entrevista do coronel reformado Gelio Augusto Barbosa Fregapani, realizada pela Folha de São Paulo em 2008. Quando questionado sobre acusações de organizar uma guerrilha de arrozeiros para resistir à demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol em Roraima, Fregapani respondeu colérico e provocativo: “Se tivesse ensinado táticas de guerrilha não tinha um policial federal lá. E quem afirmou isso estaria morto. Esse pessoal não pode competir comigo. Agora, quando a região se declarar independente, aí sim vou fazer guerrilhas”.

Parece evidente que, para um leitor educado, as palavras de Fregapani aparecem como o brio agressivo e vaidoso de um militar que é referência na tradição de guerra de selva no Brasil. Quer dizer, ele desprezou a acusação dizendo que caso seus conhecimentos fossem aplicados não sobraria pedra sobre pedra, que a acusação portanto não tem sentido e que ele só faria algo do tipo caso a região declarasse separação em relação ao resto do Brasil. 

Segundo o jornalista, essas frases “caberiam na boca de um criminoso”. Um veterano militar disse que faria guerra de guerrilhas caso se iniciasse um movimento separatista no Brasil e o jornalista diz que isso é um discurso criminoso. Dizer que é contra o separatismo no Brasil é discurso de criminoso? O artigo, porém, se escandaliza com essas e outras declarações que são estigmatizadas pelo autor.

Um dos motivos do escândalo está no seguinte trecho:

<<<“Tudo indica que os problemas ambientais e indigenistas são apenas pretextos. Que as principais ONGs são, na realidade, peças do grande jogo em que se empenham os países hegemônicos para manter e ampliar sua dominação.” Este trecho não saiu da boca de Aldo Rebelo nem de algum outro teórico da conspiração de rede social. Está num relatório de Inteligência, de 2005, chancelado pela Agência Brasileira de Inteligência, a Abin. >>>A operação retórica do autor é identificar críticas contra ONGs como peões de interesses hegemônicos e figuras como Aldo Rebelo com “teóricos de conspiração de rede social”. É impressionante que tal postura venha de alguém com pretensões críticas.

A discussão sobre organizações multinacionais milionárias, ou bilionárias, influenciando ativamente a política dos países não é uma discussão de conspiracionistas: é do interesse de todos aqueles que querem observar as posições de força no debate público. A tentativa de Rafael Moro marginalizar os críticos com a pecha de “conspiracionismo” consiste em naturalizar a posição de poder dessas potências multinacionais. Até a forma como o autor cria sensação com a expressão “chancelado pela ABIN” tem algo de leviano: um relatório de inteligência é apenas um relatório de inteligência, não é exatamente uma grande declaração de princípios públicos. Não é nosso objetivo aqui escrever um tratado sobre relações internacionais para dizer o que deveria ser o início da discussão, não o fim dela. A União Europeia financia ONGs de acordo com uma estratégia política que aumenta a projeção do seu poder, projeção baseada na produção de regras, de valores e do que alguns chamam de soft power.  Os Estados Unidos, que são uma superpotência militar presente em todo o globo, também projetam seu poder político através da influência de ONGs e da assistência — chega a ser trivial mencionar que a USAID (Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Econômico) foi criada durante a Guerra Fria. No mundo de Rafael Moro, porém, os brasileiros não podem pensar de forma crítica sobre o papel das ONGs na geopolítica mundial pós Guerra Fria, provavelmente só existem boas e caridosas intenções sendo conduzidas pelo poder racional e neutro dos tecnocratas que recebem salários gordos a frente das organizações não-governamentais.  O questionamento só pode ser obra de extremistas e de teorias da conspiração. De toda forma, o autor usa Fregapani como um “exemplo extremo” do que seria “a ideologia dos militares que moldou a Amazônia de hoje”. Para Moro, tal ideologia “aparece na visível má vontade com que as Forças Armadas se engajam no combate ao genocídio Yanomami”, apesar dele não estabelecer o que seria a tal “visível má vontade” — grave e leviano, já que o autor fala claramente de um genocídio.

O autor é dado às frases bombásticas, como o faz em outro momento, se referindo novamente à Aldo Rebelo: “que ironicamente foi ministro da Defesa de Dilma Rousseff entre 2015 e 2016, época em que era filiado ao Partido Comunista do Brasil; atualmente, está no MDB e tentou ser candidato a vice-prefeito na chapa bolsonarista em São Paulo”. A chapa chefiada pelo MDB, por um político que está no MDB desde a juventude — Ricardo Nunes — virou a “chapa bolsonarista em São Paulo”. Se Aldo Rebelo de fato fosse o vice da chapa, a chapa seria puro sangue, dominada pelo MDB, mas o autor prefere a opção mais impactante de dizer que a chapa seria “bolsonarista”, como se ela fizesse parte de um movimento ou de uma ideologia mais específica. 

O autor escreve essas coisas, afinal, para tratar como um problema que o Exército e as Forças Armadas —  instituições de Estado — tenham uma visão básica de que existem riscos geopolíticos associados à Amazônia e que portanto ela é uma questão central na integridade territorial brasileira. Esse fato — quase trivial, visto que forças de defesa devem defender nosso território — é associado pelo autor com episódios mais conturbados e conflitos ideológicos que envolveram o exército na nossa história recente, em especial aqueles associados à ditadura militar. Na linha de raciocínio de Moro, essa foi a “ideologia” que moldou a Amazônia contemporânea, descrevendo negativamente o processo de colonização da região e colocando problemas compartilhados por todo o Brasil, em especial aqueles associados à urbanização, como problemas decorrentes do processo de ocupação da região amazônica.

O artigo do sr. Moro parece um lamento de um romântico que idealiza a natureza contra o que identifica como vicissitudes da modernidade: as cidades desordenadas, o crime, as plantações que entraram no lugar das florestas, tudo tem um impacto estético e ético no nosso autor que consolida sua denúncia aos militares com esses problemas que configuram a falta de desenvolvimento social nos estados amazônicos. Enfatizamos, entretanto: esses problemas não são decorrentes do desenvolvimento social e econômico, mas da falta dele.

O autor insiste que essa tal “ideologia militar” moldou a Amazônia. Ora, se a “ideologia militar” é ocupar e produzir na Amazônia, como ganharam tanta força as posições associadas às demarcações de terras indígenas e reservas ambientais mais restritivas do ponto de vista econômico? O autor também quer denunciar que os militares seriam supostamente anti-indígenas por acreditar que povos indígenas podem ser cooptados por estrangeiros. Dizemos: não os indígenas, mas os indigenistas de ambição desmedida, que fazem discursos de guerra, estes sim mostram disposição em cooperar com potências estrangeiras. No dia 22 de junho, embaixadora da União Europeia Marian Schuegraf visitou a terra indígena Manoá-Pium, no município de Bonfim, Roraima, e foi recebida por militantes que dizem estar lutando pela “retomada de terras” contra ‘invasores”, que desprezam as fronteiras do país e que declararam enxergar a embaixadora como aliada política.

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O autor da Sumaúma insiste em se revoltar, porém, apontando que trabalhos de estudantes da Escola de Comando do Estado-Maior do Exército discutem cenários de balcanização e mexicanização no Brasil. Não há porque se escandalizar com trabalhos sobre geopolítica e segurança nacional envolvendo o Brasil e a região amazônica nesses cenários, pois esses conceitos fazem parte de questões presentes no mundo todo e devem ser usados para projetar nossa segurança futura. Não queremos faixas territoriais separadas do Brasil em nome de pequenos nacionalismos ou por causa da atuação de grupos criminosos paramilitares. E não queremos que potências estrangeiras usem reivindicações de enclaves definidos por enclaves étnicos para justificar intervenções militares como já aconteceu com outros países. E se já aconteceu em outros países, pode acontecer no Brasil.

Defender a Amazônia não deveria ser chamado de ideologia, sobretudo quando estamos falando de militares profissionais: pensar nos riscos e nas formas de defender a Amazônia não é ideologia. Felizmente ainda existem funcionários do Estado dedicados a pensar nesses problemas. Infelizmente, porém, existem aqueles cujo trabalho é desqualificar essas discussões com rótulos de conspiracionismo. Será que sai barato?

Editorial