Dia do Futebol: Matar ou Morrer
Dia 19 de Julho é Dia Nacional do Futebol e celebramos este dia com uma das crônicas de Nelson Rodrigues, que nos lembra da importância do futebol na nossa cultura, que se relaciona com alguns dos sentimentos mais profundos da existência humana
Dia 19 de Julho é Dia Nacional do Futebol e celebramos este dia com uma das crônicas de Nelson Rodrigues, que nos lembra da importância do futebol na nossa cultura e como o grande escritor exigiu garra da seleção em 1966
Amigos, se me perguntarem qual é o maior defeito do futebol brasileiro, eu direi: — a delicadeza e, reforço, a extrema delicadeza. De fato, não há na Terra um craque que tenha a polidez do nosso. O brasileiro é um tímido, um contido, um cerimonioso. Foi assim em 58, foi assim em 62. Nas duas Copas, os adversários já entravam de navalha na liga.
Ao passo que, até no foul,38 o escrete verde-amarelo era de uma suavidade impressionante. Vejamos em 58. O jogo Suécia x Alemanha39 foi uma carnifi cina. Eu estava vendo a hora em que os adversários iam arrancar a carótida uns dos outros para chupá-la como tangerina. Foram noventa minutos de uma ferocidade recíproca e homicida. Valeu tudo, rigorosamente tudo.
Pois o Brasil não fez um único e escasso vexame. Era de dar pena a correção dos nossos rapazes. Jogavam na bola e só na bola. Jamais o mundo vira um escrete tão doce e de uma inocência quase suicida. Um sociólogo que lá estivesse havia de fazer a constatação apiedada: — “O escrúpulo é próprio do subdesenvolvimento!”
O escrúpulo e mais: — a humildade, a lealdade, o altruísmo. No jogo Brasil x França, o árbitro comportou-se como um larápio. Não houve, em toda a história da Copa, um roubo mais cristalino e cínico. Tivemos que fazer três gols para que valesse um. E o escrete brasileiro nem piscou. Deixou-se furtar e só faltou beijar na testa do ladrão.
O pior vocês não sabem. Até 58, o Brasil fazia de si mesmo a pior das imagens. Sim, o brasileiro se considerava um facínora. E, no Maracanã, quando um de nós ousa um foul mais violento, o estádio vem abaixo. Por toda parte há quem esbraveje: “Cavalo! Cavalo!” Mas é uma injustiça. Muito mais brutal do que o nosso é o futebol da Inglaterra, da Alemanha, da França, da Itália, da Bulgária.
O meu amigo Antonio Callado viu, certa vez, um jogo de Inglaterra e Escócia. Foi um pau só, do primeiro ao último minuto. E, súbito, explode um sururu. Brigaram os 22 jogadores, o juiz, os bandeirinhas, as torcidas. A polícia montada teve de invadir o campo. No Brasil, o sururu é tão antigo, tão obsoleto como um quepe da Guerra do Paraguai. E quando um de nós dá um tapa as manchetes tremem e há uma comoção nacional.
A doçura, a cerimônia, a timidez do nosso futebol são defeitos gravíssimos. Um jogador brasileiro tem vergonha de pisar na cara do adversário caído. O europeu, não. O europeu não recua diante de nada. Vocês se lembram do jogo Brasil x Alemanha, aqui, no Maracanã. Foi uma partida medíocre, mas que teve um lance de epopeia.
Refiro-me à bola dividida entre Pelé e um alemão. Este não recuou, nem o brasileiro. E o dilema criado para ambos foi o seguinte: — matar ou morrer. O alemão preferiu matar e Pelé não quis morrer. O nosso levou vantagem pelo seguinte: — porque introduziu no choque a molecagem brasileira. Conclusão: — Pelé sobreviveu e o germânico saiu de maca.
A imprensa teve a reação própria do subdesenvolvido: — condenou Pelé. Se a coisa fosse na Alemanha, e a vítima, Pelé, o cronista de lá ia considerar a fratura um fato normal e intranscendente. Amigos, na Europa, o foul praticamente não existe. O juiz só costuma apitar quando um adversário estripa o outro.
E não há dúvida de que, por uma tendência natural e, ainda mais, por se tratar de um tri, vão caçar os brasileiros a pauladas. Outrora, o brasileiro babava de inveja e deslumbramento só de ouvir falar no inglês. Mas a verdade é bem diferente. Hoje, sabemos que o único inglês da vida real é o brasileiro. Sim, qualquer favelado nosso, desdentado e negro, é um monstro de boas maneiras.
Crônica de Nelson Rodrigues para O Globo, 28/5/1966
Publicado em "A Pátria de Chuteiras", Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2013, pp. 91-93.