Dossiê Amazônia: o memorando Lindbergh

A problemática da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol já era reconhecida até por parlamentares da base do governo responsável por sua homologação

Dossiê Amazônia: o memorando Lindbergh
Foto de Antõnio Cruz / Agência Brasil

A problemática da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol já era reconhecida até por parlamentares da base do governo responsável por sua homologação

Por iniciativa da Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural, foi retomado no Congresso Nacional o debate sobre a Terra Indígena Raposa Serra do Sol. O deputado Evair de Melo (RS) argumentou que a necessidade de rediscussão da demarcação se dá pela crise na produção de arroz no Brasil. Tal relação ocorre por causa da polêmica remoção dos arrozeiros que trabalhavam em terras que foram demarcadas após a homologação.  O episódio dramático que afetou a agricultura e a economia de Roraima, não só causou danos às vidas dos rizicultores, mas, segundo levantado por matéria da Gazeta do Povo, trouxe efeitos negativos para a população indígena. 

Em 2004, a comissão parlamentar responsável por investigar a questão da homologação da terra indígena, da qual o então deputado Lindbergh Farias foi Relator, apontou diversos problemas caso a proposta de uma demarcação em terras contínuas fosse aprovada, proposta que por fim foi assinada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva e teve entre suas consequências a tragédia dos rizicultores. Mesmo sendo da base do governo, Lindbergh Farias atuou como um relator capaz de enxergar a divisão existente no seio dos povos indígenas de Roraima (muitos índios eram contra a homologação), expondo os eventuais problemas que aquela proposta poderia criar no estado e os riscos para a segurança nacional que estavam embutidos naquele modelo.  

Roraima é um estado que luta para manter uma economia ativa, sofre com os grilhões da pobreza, tem pouca infraestrutura e depende muito de repasses federais. A demarcação da forma como foi feita não solucionou esses problemas, mal tratou desses problemas e colocou mais dificuldades do que caminhos para a resolução. Na verdade, no que diz respeito à produção, o relatório da comissão mostra que mesmo os índios que acreditavam na demarcação falavam sobre a possibilidade de produzir e ter uma vida econômica própria, mas a realidade é de uma vida econômica limitada, submetida pela tutela da FUNAI e marcada pelo assistencialismo de ONGs. 

O que está em jogo não é só rever o destino dos rizicultores que foram expulsos de sua terra, mas um debate sobre a soberania brasileira na Amazônia, que se vê reacendido. Do outro lado do debate não estão somente aqueles movidos pelos melhores sentimentos do indigenismo, mas uma coalizão que deseja se fortalecer opondo índio ao não-índio, desconstruindo a identidade brasileira e reduzindo ao máximo a capacidade de atuação do Estado nacional naquela região. 

Conforme publicamos, na última semana de junho a embaixadora da União Europeia visitou uma aldeia indígena em Raposa e a liderança local declarou estar selando uma "aliança política" com os europeus. O líder indigenista exigiu mais terras do Estado brasileiro e mostrou pouca preocupação com as fronteiras internacionais reconhecidas naquela região.

Reproduzimos aqui o conteúdo da indicação da comissão ao presidente Luiz Inácio, ou o “Memorando de Lindbergh”:

Excelentíssimo Senhor Presidente da República: 

Dirigimo-nos a V. Exa. para expor e reivindicar o seguinte: 

  1. A demarcação da reserva indígena Raposa/Serra do Sol foi recentemente causa de graves conflitos no Estado de Roraima. A área da pretendida reserva acha-se identificada na Portaria n.º 820, de 11 de dezembro de 1998, expedida pelo Exmo. Sr. Ministro de Estado da Justiça (D.O.U. 14/12/98. Seção I, p. 4), e aguarda o decreto de homologação. Conforme noticiado na imprensa, grupos de índios e não-índios realizaram intensos protestos contra a demarcação na capital do Estado, Boa Vista, bloqueando estradas e causando grande comoção naquela comunidade. 

  1. Os conflitos devem-se ao fato de que a área identificada para a reserva foi delimitada desconsiderando-se algumas das complexidades sócio-econômicas da região, que tem papel crucial para a sustentabilidade econômica do Estado de Roraima e é marcada por intensa miscigenação e interação entre índios e não-índios, e por uma intricada situação fundiária. A área identificada inclui vilas e cidades, dentre elas a sede de um município; glebas sob ocupação privada onde se desenvolve intensa atividade agropastoril fundamental para a economia do Estado, muitas delas tituladas pelo poder público; uma propriedade cuja ocupação privada antiquíssima foi reconhecida por sentença judicial transitada em julgado, tendo sido ali expressamente excluído o domínio da União; estradas e vias públicas, e respectiva faixa de domínio público.  É entendimento da Comissão Externa destinada a avaliar, in loco, a situação da demarcação em área contínua da reserva indígena "Raposa/Serra do Sol", no estado de Roraima, que a demarcação seja feita excluindo-se tais áreas, pelas razões que seguem. 

  1. Os trabalhos da Comissão Externa mostram que a questão da defesa nacional tem sido negligenciada no debate sobre a situação de reservas indígenas em faixas de fronteira. Órgãos de inteligência do governo, inclusive das Forças Armadas, tem apontado o risco que a demarcação, se feita nos moldes propostos pela Portaria n.º 820/98, poderá trazer à segurança do País. Trata-se de área de grande extensão, contígua a uma região disputada pela Venezuela e pela Guiana desde meados do século XIX. O contencioso sobre a fronteira foi objeto de moratória assinada por esses dois países em 1970, mas a Venezuela ainda reivindica a área e a região continua sujeita a instabilidades. 

  1. A baixa densidade populacional na região de Raposa/Serra do Sol é um fator adicional de preocupação. Se a densidade média registrada na totalidade do Estado de Roraima não passa de 1,44 habitante/Km², nas áreas de fronteira a situação é particularmente crítica. A exclusão do município de Uiramutã das terras abrangidas pela reserva agravaria o problema. O vazio demográfico, conjugado com o acirramento dos conflitos indígenas e fundiários, pode favorecer a prática de atividades ilegais nas zonas de fronteira, tornando-as mais vulneráveis interna e externamente. 

  1. A Comissão Externa constatou ainda uma oposição sistemática de organizações não-governamentais à ação das Forças Armadas– a ponto de ajuizar ação judicial para tentar, sem êxito, evitar a instalação de um pelotão do Exército no Município de Uiramutã. Essa atuação constitui um entrave às atividades de defesa nacional, em violação à liberdade de trânsito garantida às Forças Armadas e à Polícia Federal pelo Decreto no 4.412, de 2002, para movimentação de suas tropas em áreas indígenas. 

  1. Cumpre ressaltar que a chamada "vivificação das fronteiras" é estratégia reconhecida na Política de Defesa Nacional, aprovada em 1996, que determina à União priorizar ações para desenvolver e vivificar a faixa de fronteira, em especial nas regiões Norte e Centro-Oeste. Por estar a pretendida área Raposa/Serra do Sol em região de fronteira, sujeitas a atividades como garimpo ilegal, contrabando, narcotráfico e biopirataria, é fundamental que as Forças Armadas tenham ampla liberdade de atuação na região. É necessário portanto incentivar a ocupação humana, com os objetivos de consolidar a presença brasileira em áreas estratégicas do território nacional, facilitar o combate a ilícitos nacionais e transnacionais e promover a dignidade das populações locais. 

  1. Outrossim, a Área Indígena Raposa/Serra do Sol é riquíssima em recursos naturais e minerais. Levantamentos apresentados à Comissão Especial indicam reservas de diamante, molibdênio, ouro, ametista, cobre, caulim, barita, diatomito, zinco, titânio, calcário e nióbio, além de indícios de ocorrência de urânio e tório. Seus principais rios – Cotingo, Surumu, Maú e Itacutu – apresentam significativo volume de água, mesmo durante a época de seca. A região possui rico e variado patrimônio natural, onde se inclui o Parque Nacional do Monte Roraima, criado em região de floresta tropical pelo então presidente José Sarney, em 1989. Considerada uma das mais belas paisagens da Amazônia brasileira, o parque tem fauna e flora diversificadas e abundantes. Vale lembrar que a Amazônia constitui o maior banco genético do planeta e conta com um quinto da disponibilidade de água e 1/3 das florestas tropicais do mundo, além de riquezas incalculáveis no subsolo. Tal patrimônio – do qual o Brasil detém substancial parcela – representa um potencial estratégico que tende a assumir ainda maior importância no futuro. 

  1. A existência, embora ainda incipiente, de conceitos como soberania relativa sobre a Amazônia, enunciada pelos países centrais, e o reconhecimento do direito de autodeterminação aos povos indígenas presente, por exemplo, na Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas, em preparação nas Nações Unidas – recomendam prudência e visão estratégica na delimitação da futura reserva indígena Raposa/Serra do Sol. 

  1. Nesse contexto, é imperativo que a criação da reserva Raposa/Serra do Sol em área de fronteira seja precedida de manifestação do Conselho de Defesa Nacional, tendo em vista a competência desse órgão para manifestar-se sobre assuntos ligados à segurança nacional. A participação do Conselho é particularmente importante no processo demarcatório da reserva indígena Raposa/Serra do Sol, porque cabe a ele propor critérios e condições de utilização das áreas indispensáveis à segurança do território nacional e opinar sobre seu efetivo uso, especialmente na faixa de fronteira, bem como propor iniciativas necessárias à garantia da independência nacional (CF, art. 91, § 1º, III e VI). 

  1. A observância aos princípios constitucionais referentes à segurança e independência nacional, bem como a cautela no trato das citadas peculiaridades da área indígena Raposa/Serra do Sol, recomendam a criação de uma área de segurança de 15 km ao longo da fronteira do Brasil com a Guiana e a Venezuela. 

  1. É certo que os interesses indígenas na região devem ser atendidos, em cumprimento ao art. 231 da Constituição Federal. Entretanto, cumpre lembrar que a Carta de 1988 constitui um sistema normativo, não cabendo interpretar o § 1º do art. 231 isoladamente, como único fundamento constitucional para a demarcação da reserva Raposa/Serra do Sol e das terras indígenas em geral. Impõe-se a observância do princípio da unidade da Constituição, segundo o qual “as normas constitucionais devem ser consideradas não como normas isoladas, mas sim como preceitos integrados num sistema interno unitário de regras e princípios”. 

  1. O conteúdo do referido dispositivo deve ser compatibilizado com outras normas constitucionais da mais alta relevância, tais como o princípio da soberania (CF, art. 1º, I); segurança nacional (art. 91, § 1º); garantia do desenvolvimento nacional, (art. 3º, II); independência nacional, (art. 4º, I); caráter fundamental da faixa de fronteira para a defesa nacional (art. 20, § 2º); autonomia federativa (art. 18); devido processo legal, (art. 5º, LIV); e garantia da propriedade (art. 5º, XXII). O próprio art. 231, em seu § 6º, condiciona o usufruto das terras indígenas ao “relevante interesse público da União”. Com efeito, lei complementar federal poderá invalidar a nulidade cominada ao aos atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio, a posse ou a exploração das riquezas em terras indígenas. 

  1. O aparente conflito entre essas disposições constitucionais há de ser resolvido utilizando-se a ponderação de princípios e normas – processo em que o intérprete “não escolhe entre este ou aquele”, mas “apenas atribui mais peso a um [princípio ou norma] do que a outro, em função da circunstância do caso, num juízo de ponderação (...)”. É necessário garantir que a reserva Raposa/Serra do Sol dê cumprimento ao dever constitucional de proteção aos indígenas, mas igualmente que não fiquem desamparados outros interesses protegidos pela Constituição Federal, aos quais o Constituinte deu a relevância de princípios fundamentais da República e de cláusulas pétreas. 

  1. A inclusão da mencionada zona de proteção visa precisamente à responder às peculiaridades da região, que é riquíssima em recursos naturais, situada em zona remota do território nacional, com escassa povoação, e é contígua à área disputada por países vizinhos. 

  1. Por essas mesmas razões, o reconhecimento no Decreto n.º 80/MJ, de 1996, de que é possível a criação de reserva indígena em zona de fronteira, por dupla afetação constitucional, não afasta a necessidade de cautela. Cumpre registrar que o Tribunal Regional Federal da 1ª Região entendeu que, “em caso de conflito [entre os vários direitos envolvidos na criação da reserva indígena Raposa/Serra do Sol], deveria ser priorizado o interesse maior de todo o povo brasileiro à defesa das fronteiras e à segurança nacional”. Trata-se de decisão onde se impugnava a instalação do 6º Pelotão Especial de Fronteira (PEF) no Uiramutã. O Tribunal reconhece que o lugar é estratégico “por se tratar região de fronteira com dois países (Guiana e Venezuela) e por isso, torna-se imprescindível a instalação de um pelotão pela ocorrência de inúmeros conflitos na região, contrabando, narcotráfico e constantes invasões de guerrilheiros”. Recomenda portanto a prudência que seja mantida, dentro do possível, a presença de não-índios na região, assegurando a ocupação produtiva e a integração daquela área ao território nacional. 

  1. A manutenção das áreas em questão na futura reserva agravará o quadro social de Roraima, podendo trazer desemprego para a região e causar êxodo rural das populações envolvidas. Os trabalhos da Comissão Externa constataram a existência de conflitos intertribais sobre a demarcação da área, entre grupos favoráveis à manutenção dos atuais limites e uma parcela substancial dos índios que se opõe vigorosamente à demarcação sem que se excluam as áreas objeto de controvérsia. Esse último grupo teme pelo esvaziamento econômico da região e pela extinção dos municípios já criados – na sua avaliação, democraticamente constituídos por meio de plebiscito, e fonte de serviços essenciais e de progresso. Teme-se igualmente pelos efeitos negativos da desintrusão – processo de remoção dos não-índios –, que dividirá comunidades e ameaçará a existência de núcleos populacionais constituídos. Há também receio de êxodo para a periferia das cidades, sendo que a alta concentração urbana e o inchaço das periferias já constituem problemas que reclamam solução no Estado. O confronto entre as 33 Agravo de Instrumento n.º 2001.01.00.004195-0, Relator Desembargador Daniel Paes Ribeiro. In DJ. 31.08.2001, republicado em 22.04.2002 (grifos nossos). 

  1. Outrossim, a demarcação nos moldes da Portaria n.º 820/MJ, de 1998, é intensamente combatida pelas autoridades dos Poderes Executivo e Legislativo do Estado e dos Municípios envolvidos. Essa oposição é compartilhada pela parcela não-índia da população que será afetada pela atual delimitação da reserva. Nesse contexto, a colisão dos diversos interesses envolvidos e as conseqüências sociais negativas contribuem para criar uma atmosfera de confronto que poderá agravar significativamente a situação social no Estado. 

  1. A manutenção das áreas em questão na futura reserva abalará também a economia de Roraima, que depende fundamentalmente das atividades produtivas realizadas na região da Raposa/Serra do Sol. A rizicultura ali praticada responde por uma substancial parcela da atividade econômica de Roraima e de sua população, bem como pelo abastecimento de todo o arroz consumido no Estado. As estradas e vias públicas são, por sua vez, essenciais para o escoamento da produção e para o trânsito de bens e pessoas na região. 

  1. A importância das atividades produtivas desenvolvidas na Raposa/Serra do Sol se mostra crucial quando se tem em conta que o Estado de Roraima ainda não possui ainda economia sólida, dependendo essencialmente de transferências federais – que respondem por 80% das rendas do Estado e 95% das rendas dos Municípios – para sua manutenção. Os trabalhos da Comissão Externa apontam a extinção de estimados 6.000 empregos, diretos e indiretos, com a demarcação em área contínua.  A isto se acrescente o fato de que apenas 7,2% das terras do Estado estão hoje disponíveis para exploração econômica, segundo dados da EMBRAPA, o que restringe gravemente a capacidade de desenvolvimento e a sustentabilidade do novo Estado. Dados da Associação dos Produtores de Arroz de Roraima indicam que o arroz irrigado produzido naquele Estado alimentam uma população de aproximadamente dois milhões de pessoas, no Amazonas, Pará e Amapá, além da totalidade do consumo local. Para o ano de 2004, a renda bruta esperada da rizicultura no Estado é de aproximadamente R$ 128 milhões, equivalente a 10,25% do Produto Interno Bruto de Roraima, que, segundo o IBGE, é de R$1,2 bilhão.35 Pode-se facilmente antever a gravidade dos danos para a economia do Estado, caso as áreas supramencionadas sejam incluídas na reserva Raposa/Serra do Sol. 

  1. Por outro lado, a área cultivada na área da Raposa/Serra do Sol é de 12.000 há. Isso representa apenas 0,6% da futura reserva. Sua retirada poderia ser efetuada numa solução conciliatória, sem atingir – mesmo minimamente – os interesses das comunidades indígenas que ali habitam. 

  1. A supressão do Município de Uiramutã tem repercussões federativas que não podem ser desconsideradas. Tal unidade federada é autônoma, nos termos do art. 18 da Constituição Federal. Sua criação obedeceu regular processo constitucional, que envolve inclusive consulta plebiscitária às populações interessadas, seguida da eleição dos representantes locais. Esse processo democrático confere legitimidade ao novo município e exprime a intangível autonomia federativa de auto-organização dos Estados e Municípios, que não pode ser afrontada pela União. 

  1. Vale destacar que a impugnação da instalação do Município de Uiramutã, por se tratar de área indígena, foi rejeitada no Supremo Tribunal na citada ADI 1512/RR. Nessa decisão o Tribunal expressamente aponta incertezas quanto aos requisitos para que se declare a área indígena nos termos do art. 231 da Constituição. Particularmente, o voto do relator, Ministro Maurício Corrêa, considera “de extrema violência” que se anule a vontade política da população local antes do completo deslinde das controvérsias sobre a ocupação indígena daquela área.

  1. A atual delimitação da reserva trouxe prejuízos para a segurança jurídica na região, violando direitos adquiridos e a autoridade da coisa julgada (Constituição Federal, art. 5º, XXXVI). A área da reserva inclui fazendas regularmente tituladas pelo INCRA, ou cujo domínio foi assegurado em sentença judicial transitada em julgado. A delicada situação fundiária da Raposa/Serra do Sol envolve ainda a ocupação legalmente reconhecida de terras por não-índios que remonta a meados do século XIX, conforme destacado pelo Ministro Maurício Corrêa na ADI 1.512/RR. O Ministro aponta que a Lei n.º 601, de 1850, regulamentada pelo Decreto n.º 1818, de 1854, deu legitimação à posse dos que ali detêm a terra, e que títulos de propriedade foram legitimamente expedidos pelo Estado do Amazonas, quando a área 36 Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 1.512/RR, Relator Min. Maurício Corrêa, D.J. 08/01/2003, p. 99.8 ainda estava sob sua jurisdição. Esses proprietários, entretanto, viram-se surpreendidos pela inclusão de suas terras na área pretendida pela FUNAI, em flagrante violação de direitos adquiridos e da coisa julgada. 

  1. É assente que o princípio da segurança jurídica exige, no Estado de Direito, a “(1) fiabilidade, clareza racionalidade e transparência dos atos do poder [público]; (2) de forma que em relação a eles o cidadão veja garantida a segurança nas suas disposições pessoais e nos efeitos de seus próprios actos”. Como conseqüência, impõem-se a irretroatividade dos atos normativos, a inalterabilidade da coisa julgada e a “tendencial estabilidade dos casos decididos através de actos administrativos constitutivos de direito”, de forma a criar um ambiente de “estabilidade jurídica, segurança de orientação e realização do direito”, que permite ao indivíduo “conduzir, planificar e conformar autónoma e responsavelmente a sua vida”. É imperativo, portanto, dar estabilidade aos atos legítimos de reconhecimento de domínio realizados na área da Raposa/Serra do Sol para respeitar a segurança jurídica e proteger a boa fé daqueles que ocuparam o extremo Norte do País, sem sujeitá-los a uma política errática e inconstitucional que viola atos oficiais constitutivos de domínio, regularmente praticados. Nesse contexto, sobressai a admoestação do Ministro Maurício Corrêa na citada ação de inconstitucionalidade, para quem a Administração deverá tomar providências acautelatórias para que a homologação da reserva Raposa/Serra do Sol não fira direitos e “não deixe ao oblívio e ao relento os chamados civilizados que possam se encontrar no pleno direito, uso e gozo dessas propriedades que lá possuem, e que herdaram muitos deles, de seus pais, avós e tataravós”.

  1. Outrossim, a Portaria n.º 820/MJ, de 1998, fere o art. 2º, § 8º do Decreto n.º 1.775 de 1998, que estabelece o contraditório administrativo na demarcação de terras indígenas, em obediência ao devido processo legal. Viola também o art. 2º, § 10, III, do mesmo diploma, que determina a rejeição da identificação caso as terras não preencham os requisitos do art. 231, § 1º da Constituição. Com base no primeiro dispositivo citado, o domínio privado de várias áreas incluídas na reserva foi objeto de contestação administrativa perante o Ministério da Justiça, que determinou sua exclusão da reserva Raposa/Serra do Sol. Com efeito, o Despacho Ministerial n.º 80/MJ, de 20 de dezembro de 1996 (D.O.U 24/12/96, Seção I, p. 28.282) determina expressamente a exclusão das vilas, cidades, fazendas e vias públicas que menciona da área destinada aos índios, sob o fundamento de que tais áreas não atendem os requisitos do art. 231 da Constituição Federal para serem reconhecidos como terras indígenas. A portaria de identificação, entretanto, não dá conseqüência ao determinado no despacho, e procede à demarcação sem a referida exclusão, ignorando uma etapa necessária do processo demarcatório e os motivos ali expendidos pela Administração. 

  1. Na oportuna observação de Celso Antônio Bandeira de Mello, o administrador “não pode extrair conseqüências incompatíveis com o princípio de direito aplicado”. Fazendo-o, “o ato será nulo por violação de legalidade”, que sujeita o ato ao controle jurisdicional. Havendo decisão da Administração quanto às contestações das partes interessadas, expressa no Despacho Ministerial n.º 80/MJ, de 1996, cabe ao poder público, na portaria de identificação, ater-se às razões apontadas no referido despacho ministerial, para que não se extraiam conseqüências incompatíveis com as razões enunciadas pela Administração. Não foi isso, entretanto, o que ocorreu, pelo que a Portaria n.º 820 acha-se eivada de inconstitucionalidade e ilegalidade. 

  1. A elaboração de peças centrais do laudo antropológico por organizações não governamentais ligadas à defesa dos direitos indígenas, ou seus representantes, compromete a isenção daquele documento, em prejuízo da impessoalidade da atuação da Administração Pública. Tais entidades têm atuação aguerrida na causa indígena, tendo o CIR criticado duramente o governo federal pelo que considera “obstáculos criados pelo Decreto n.º 1775” e a “complexificação e alongamento do processo administrativo” de demarcação, inclusive com a apresentação de uma denúncia contra o País perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos – OEA.41 Cumpre lembrar que “a Administração não pode atuar com vistas a prejudicar ou beneficiar pessoas determinadas,  uma vez que é sempre o interesse público que tem que nortear o seu comportamento”. Nesse sentido é o espírito do Decreto n.º 1.775/96, quando abre oportunidade para a oitiva de entidades civis, membros da comunidade científica, outros órgãos públicos, órgãos pertinentes das unidades federadas e demais interessados em vários momentos do processo demarcatório. Tal cautela da legislação prende-se ao fato de que, não obstante o objetivo seja de garantir aos índios a posse e usufruto das terras que eles tradicionalmente ocupam, há outros valores a serem observados na identificação de uma reserva. Deles são exemplos o respeito ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada – garantias constitucionais protegidas como cláusula pétrea (CF, art. 60, § 4º, IV) – e o impedimento que a União indiretamente ponha em risco a existência de um Estado-membro, ao atingir gravemente sua sustentabilidade econômica. 

  1. Resta violado igualmente o princípio da razoabilidade na atuação da Administração, que veda a escolha de “medida desproporcionada, excessiva em relação ao que se deseja alcançar”. Na escolha dessas medidas, é assente que o administrador deve agir “afastado de seus próprios standards ou ideologias, portanto dentro de critérios de razoabilidade geral”.

  1. Vê-se, em conclusão, que a localização da futura reserva indígena Raposa/Serra do Sol em área de fronteira, contígua a zona em disputa por países vizinhos, levanta questões relativas à segurança nacional que merecem a mais imediata atenção do poder público. Sua demarcação nos moldes da Portaria n.º 820/MJ, de 1998, poderá causar grandes danos à ordem social e à sustentabilidade econômica do Estado de Roraima. Serão prejudicadas ainda a harmonia e a convivência pacífica das tribos indígenas que se procura proteger, e destas com os não-índios que comprovadamente habitam a região há pelo menos 150 anos. Há igualmente conseqüências federativas graves, sobre as quais já se pronunciou o Supremo Tribunal Federal, recomendando cautela na salvaguarda da vontade democrática das populações locais e respeito aos direitos de não-índios. O processo administrativo de demarcação acha-se eivado de vícios, cujas conseqüências atingem diretamente a segurança jurídica de moradores da região e violam garantias constitucionais da mais alta hierarquia. Nesse contexto, todas as circunstâncias recomendam extrema prudência na demarcação da área indígena Raposa/Serra do Sol. 

  1. É certo que o interesse de proteção das comunidades indígenas há de ser respeitado, nos moldes do art. 231 da Constituição Federal. Cumpre entretanto lembrar que a Constituição é patrimônio de todos os brasileiros. A proteção que ela oferece vai muito além do citado artigo, e suas disposições alcançam cada grupo, cada etnia e cada cidadão, para que, na proteção de cada um de nós, o bem coletivo se realize. Sendo a Carta Magna uma unidade normativa, cabe interpretar a proteção ao interesse das comunidades indígenas de forma a não prejudicar – como no caso, gravemente– interesses legítimos e igualmente tutelados pelo texto constitucional. Caberá ao governo da União, ente competente para a solução da controvérsia aqui exposta, ter sabedoria para concretizar esse objetivo. 

  1. Ante todo o exposto, entendemos absolutamente necessária nova identificação das terras destinadas à reserva indígena Raposa/Serra do Sol, dela retirando as áreas cujo aproveitamento é fundamental para a economia do Estado, bem como uma faixa de 15km ao longo da fronteira do Brasil com a Guiana e a Venezuela, aí incluído o Município de Uiramutã. Isto se fará com vistas à preservação da paz social e à garantia da segurança nacional e da ordem constitucional no Estado de Roraima. 

  1. Entendemos também ser imprescindível que se convoque a reunião do Conselho de Defesa Nacional, para que este debata em profundidade e se pronuncie sobre a questão, que envolve a segurança nacional em zona de fronteira. 

  1. Estas as providências que sugerimos a V. Exa., sendo o Poder Executivo o detentor da iniciativa constitucional para tanto. 



Deputado LINDBERG FARIAS

A íntegra do relatório pode ser lida aqui.