Editorial: Biden na Amazônia
Biden sai de cena e deixa como legado um império de financiamento e parcerias, o que levanta questões sobre a autonomia brasileira e os interesses por trás das "ajudas" ao desenvolvimento sustentável
Biden sai de cena e deixa como legado um império de financiamento e parcerias, o que levanta questões sobre a autonomia brasileira e os interesses por trás das "ajudas" ao desenvolvimento sustentável
Em um palanque com o grande selo dos Estados Unidos, Joe Biden discursou para jornalistas no Museu da Amazônia, em Manaus. O fim do seu discurso acabou se tornando um meme cómico na rede, pois o presidente dos Estados Unidos foi na direção da mata que estava atrás dele: é como se Biden saísse de cena para se perder na floresta amazônica.
Antes da fala para a imprensa, o presidente dos Estados Unidos sobrevoou a floresta e, na sua agenda, realizou encontros com “representantes de ONGs e grupos que atuam na defesa da Floresta Amazônica”, nas palavras da CNN.
O discurso foi em um tom de despedida, se referiu ao sucessor — “não é segredo que vou deixar o governo em janeiro” — porém não foi melancólico. Pelo contrário, Biden falou de suas políticas climáticas em tom orgulhoso, como o triunfo de um legado que a história não ousará apagar. Declarou que a “revolução da energia limpa” já é irreversível e, aumentando a gravidade, determinou que a questão agora é "quais governos vão ficar no caminho, e quais vão agarrar a oportunidade".
“A luta para proteger o nosso planeta, é na verdade uma luta pela humanidade, pelas gerações que ainda virão”, acrescentando que a Amazônia é um “lugar sagrado”, não o “pulmão”, mas o “coração e alma do mundo”. A alta retórica encontrou seu par no caminho prático escolhido pelo presidente dos EUA: dinheiro em somas elevadas.
Biden anunciou um novo fundo, o Brazil Restoration and Bioeconomy Finance Coalition, articulado pelos Estados Unidos, mas com os seguintes parceiros como fundadores: Agni, Banco do Brasil, BNDES, Biomas, BTG Pactual, Conservation International, U.S. International Development Finance Corporation, IDB Invest, Instituto Arapyaú, Instituto Clima e Sociedade, Instituto Itaúsa, Mombak, The Nature Conservancy, Regia Capital, re.green, o Banco Mundial e Fórum Econômico Mundial. Quer dizer, seis ONGs, três grandes bancos, uma agência de desenvolvimento, dois bancos internacionais e empresas, trustes, que atuam em uma zona cinzenta do capitalismo verde¹. O fundo deve levantar dez bilhões de dólares até 2030.
¹a Biomas é um truste de Suzano, Itaú, Rabobank, Marfrig e Vale; Mombak é “gestora de recursos” voltada para finanças climáticas, Regia Capital um banco de investimentos voltado para sustentabilidade, os dois são na prática bancos, e com eles incluímos a sociedade anônima re.green, voltada para “parcerias em reflorestamento”).
A agência de desenvolvimento DFC dos Estados Unidos também liberou US$ 37 milhões de crédito para a Mombak Gestora de Recursos Ltda, que desenvolveu um método próprio de avaliação de reduções de carbono e conduz projetos de reflorestamento; um projeto de geração de créditos de carbono no Brasil com apoio do governo dos Estados Unidos.
O presidente Biden sublinhou o compromisso de apoiar a iniciativa Tropical Forest Forever Facility, anunciada recentemente na COP16 em Cali. A visita foi marcada por outras iniciativas que não foram citadas pelo discurso de Biden, mas que devem ser lembradas por nós: a Coalizão LEAF, fundada pelos EUA, firmou uma nova parceira de finanças climáticas com o estado do Pará, no valor de US$ 180 milhões; um novo acordo de cooperação entre DFC e BNDES para facilitar investimentos no “setor climático”; criação de um laboratório de investimentos climáticos com a BB Asset, Instituto Itausa, Bloomberg Philanthropies e o Instituto Clima e Sociedade, com US$ 2 milhões da USAID.
Entre as iniciativas da USAID, são US$ 7,5 milhões para a “sociedade civil” com o International Center for Tropical Agriculture; US$ 2,6 milhões da USAID para o projeto Origens liderado pela IMAFLORA e pelo Instituto Socioambiental (ISA); US$ 4 milhões para “modelos de negócio” em bioeconomia, com a finalidade declarada de apoiar “pequenos negócios na Amazônia” em parceria com a Fundação Skoll; US$ 1,4 milhão para a Associação dos Negócios de sócio-bioeconomia da Amazônia (ASSOBIO); US$ 2,5 milhões para o projeto ARCA; US$ 2,5 milhões para “reduzir o desfloretamento” através da ONG The Nature Conservancy.
O governo dos Estados Unidos também ofereceu apoio tecnológico aos esforços do governo do Brasil no combate ao desmatamento. Aqui estão US$ 7,5 milhões, novamente oriundos da USAID, para um programa do Serviço Florestal dos EUA em apoio a projetos de cooperação em combate de incêndios no Brasil, o que inclui a formação de uma “brigada de incêndio de mulheres indígenas”. O Departamento de Energia vai apoiar projetos de “energia alternativa na Amazônia Legal” e a National Science Foundation liberou 17 milhões para projetos de saúde através do Belmont Forum (outra ONG). No plano da segurança, os Estados Unidos liberaram US$ 1,4 milhão para “combater a mineração ilegal”.
Sem constrangimentos, o governo norte-americano informa que a USAID está “investindo” US$ 1,9 milhão para o lançamento da Aliança dos Povos Indígenas pelas Florestas da Amazônia Oriental, que deve cobrir 14 terras indígenas no Tocantins e Maranhão, contemplando 11 grupos étnicos. Da mesma agência governamental, US$ 1,4 milhão para o projeto “Well-Being and Territorial Management in the Rio Negro and Xingu River Basins”, e US$ 2,6 milhão para um projeto da Administração Integrada em Terras Indígenas, que é descrito como um projeto que envolve “advocacy” (defesa de interesses, pregação) indigenista. Chama nossa atenção que ao invés de “financiamento” ou “apoio”, a comunicação governamental tenha escolhido a palavra “investimento”, já que todo investimento busca um retorno. A USAID também iniciou o investimento de mais US$ 4 milhões para a atividade “TAPAJÓS FOR LIFE”.
Leia também: A COP16 em Cali e a voz retumbante das ONGs
Na arena internacional, o grande pacote de políticas ambientais que Joe Biden trouxe na sua bolsa para o Brasil é só mais um fator que reduz a importância da COP29, que acontece em Baku (Azerbaijão) e foi celebrada pela última cúpula dos BRICS, que reforçou na Declaração de Kazan que as COPs são os fóruns legítimos para a evolução da pauta climática. Diferente do Brasil, os Estados Unidos não deram grande importância para a COP em Baku. Esse tipo de cooperação bilateral pressiona outros parceiros do Brasil, diminui a importância dos organismos multilaterais e aumenta a participação dos EUA nos assuntos da Amazônia brasileira.
O partido ambientalista do nosso governo, que se concentra ao redor de Marina Silva e reúne os interesses de várias ONGs que atuam na Amazônia, não se importa com o multilateralismo e com a moderação, e espera que os governos avancem a sua pauta o máximo possível, independente de qualquer coisa, e ai do governo que não apoiar. É natural que as ONGs beneficiárias da bonança de financiamentos enxerguem nos Estados Unidos um aliado indispensável e em Biden um grande aliado político, sem preocupação alguma por nossa independência ou por um diálogo interno que contemple os vários setores que compõem a sociedade brasileira e as demandas por desenvolvimento que gritam nos municípios amazônicos.
Com um governo que abraçou várias bandeiras ambientalistas, Joe Biden pode até declarar que suas posições são irreversíveis, mas de fato ele sofreu uma derrota política nas eleições do seu país. Sabemos que o novo presidente, Donald Trump, não tem a mesma amizade com essas ONGs do ambientalismo global — e ele valoriza mais relações pessoais do que instituições “da sociedade civil” — porém essas conexões estão incrustadas no tronco dos dois Estados e o Biden já comprometeu milhões de dólares para as forças das ONGs em nosso país, que vão passar os próximos quatro anos queimando capitais para combater o desenvolvimento da produção agrícola e a realização de novos projetos de infraestrutura.
O imperador sai de cena, mas ainda vamos ouvir muito os ecos de sua passagem pela Amazônia.
Editorial