Guerra suja, tão suja
Nelson Rodrigues comparou alguns críticos e comentaristas de futebol com a figura de chacais e abutres, celebrando o estilo agressivo e polêmico do técnico João Saldanha
Nelson Rodrigues comparou alguns críticos e comentaristas de futebol com a figura de chacais e abutres, celebrando o estilo agressivo e polêmico do técnico João Saldanha
Quando escrevo sobre as hienas, sobre os abutres, sobre os chacais do futebol brasileiro — todo mundo acha que estou fazendo uma metáfora. E ninguém desconfia que são as hienas, os chacais, os abutres os autores da catástrofe. Já rolou a cabeça de João Saldanha. Não se pense, porém, que a tragédia foi improvisada de um dia para outro.
Sabem quando começaram a afinar a guilhotina? No dia mesmo em que o escolheram para técnico da seleção. Não sei se vocês se lembram. Se não se lembram, vamos lá. Uma manhã, [João] Havelange e Antônio do Passo passaram na casa de João Saldanha. Era um domingo parnasiano, com um luminosíssimo azul de soneto. Feito o convite, o João deu a resposta fulminante: — “Topo.” Só dois dias depois e, portanto, na terça-feira, explodiu a notícia.
E se juntaram todas as invejas, todas as frustrações, todos os interesses contrariados. Uns disfarçavam menos, outros, mais, o ressentimento. O espantoso é que, pela primeira vez, cometia-se esta gafe hedionda: — a escolha de um técnico para uma função técnica. Não fora um ato político, nem do Havelange, nem do Passo.
Dias depois, encontro-me com o Havelange no Cartum. Ou por outra: — o Cartum ainda não existia. Foi no Nino. Saudei-o assim: — “Foi um lance de estadista.” Diga-se de passagem que a maioria da imprensa era contra; e assim a quase unanimidade do rádio e da TV. Mas o povo estava com o João. Por onde passava, o homem das esquinas e dos botecos fazia-lhe uma festa total. O chauffeur de praça dizia-me, de olho rútilo: — “Agora vai!” E repetia, com o lábio trêmulo: — “Agora vai!” Mas o profi ssional da imprensa, do rádio não lhe dizia “bom dia” sem lhe pingar veneno. Veneno da víbora que matou Cleópatra. Assim em todo o Brasil. Há dois ou três dias, um jornal de Curitiba abriu a manchete terrorista: — “Preso João Saldanha.” Outros vinham me soprar, lúgubres: — “Na primeira derrota, o João cai do cavalo.” Como se desejou essa “primeira derrota”.
Alguém perguntará: — “Por que essa gana de tantos contra um só?” Vejamos. Primeiro, porque ele não tem medo. Nada nos humilha mais do que a coragem alheia. Segundo, porque passou a ser o homem mais promovido do Brasil. Ainda agora, vimos a força do seu nome e de sua lenda. Seu incidente, em São Conrado, coincidiu com o sequestro do cônsul japonês. Mas o caso do João abafou, esvaziou o do japonês. Os jornais falavam do João, e de uma forma tão obsessiva que parecia ele o sequestrado, ele o raptado.
Terceiro, porque havia o terror de que voltasse, do México, com o caneco de ouro, para sempre. Imaginem o João passando, na Avenida, e de maçã na boca, como um triunfal leitão assado. O que se fez com Saldanha, na classificação, foi uma das páginas mais negras do futebol brasileiro. Passaram para o Brasil jogos que só existiam na imaginação dos bons colegas. O escrete estava uma vergonha, ninguém jogava nada. Lembro-me de um locutor vociferando: — “Assim o Brasil não passa da estreia.”
Aqui, atracado ao rádio, o povo ouvia só, em cava depressão. Mas, quando veio o teipe, foi um divertido escândalo. Os nossos jogadores deslizavam na grama como cisnes. Ninguém precisava correr. A seleção andava em campo para cansar o adversário. Contra a Venezuela, a irradiação foi uma antologia de horrores. Terminou o primeiro tempo empatado de 0 x 0.
O Brasil não fez gol na primeira fase porque, novamente, quis exaurir o inimigo. Na etapa final, fizemos um. Um dos confrades berrou: — “Agora o João vai recuar Pelé para defender o escore.” Meu Deus do céu, a superioridade brasileira chegava a ser humorística. Na sua má-fé cínica, a maioria dos confrades atribuía ao time de Saldanha os defeitos mais horripilantes. Todavia, o videoteipe, com sua veracidade burra, serviu para desmascarar toda a fraude. Sem recuar Pelé, ganhamos de cinco.
As hienas, os chacais, os abutres voltaram frustradíssimos. Precisavam de uma derrota e não tinham a derrota. Mas continuavam passando o amolador na guilhotina. Falei no jogo com a Inglaterra? Ah, não falei do jogo com a Inglaterra. Pois bem. O escrete do João, sem um treino, com os jogadores entregues na véspera, o escrete, repito, venceu a Inglaterra? E não foi uma vitória como há muitas, como há tantas. Vencemos com um ignominioso olé. Os ingleses andaram na roda como os ursos bêbados de feira.
Portanto, só uma hiena, ou só um abutre, ou só um chacal pode afi rmar que o escrete não fez nada. Em plena fase experimental, fez mais do que devia, mais do que podia. O olé em cima dos campeões do mundo foi, segundo a própria imprensa inglesa, um show maravilhoso. Mas, como não vinha a derrota inapelável, começou o massacre. Claro que nem todos os cronistas usaram o mesmo processo. Mas cada notícia sobre Saldanha era, normalmente, uma intriga vil. As manchetes faziam um descarado terrorismo contra o técnico. Isso em toda a imprensa, em todo o rádio, em toda a TV do Brasil. E era dia após dia, hora após hora, minuto após minuto.
Perdi a conta do tempo em que João foi malhado como um judas de sábado de Aleluia. E se o grande técnico dava uma bronca, o nosso grão-finismo estrebuchava: — “Não tem serenidade! Não tem equilíbrio!” Claro que podíamos dizer isso, porque cada um de nós estava fora da guerra, e abanando-se com a Revista do Rádio. Sim, é fácil ter boas maneiras, é fácil ter equilíbrio, é fácil ter serenidade quando ninguém nos xinga, quando ninguém nos insulta, quando ninguém nos massacra.
Digo “massacre” para repetir: — nunca houve, no Brasil, um massacre pessoal tão desumano. E o espantoso é que nós exigíamos do “João Sem Medo” um comportamento de estátua de Abraham Lincoln. E como os seus brios se eriçaram mais do que as cerdas bravas do javali — encontraram, finalmente, o pretexto. Faltara a derrota que as hienas esperavam. Mas o Saldanha tinha brio. Ótimo, ótimo. Por ser brioso, tinha que sair do escrete.
Houve um truque: — a demissão coletiva da comissão técnica. Mas o que se queria era a cabeça do João. E, para tanto, a guilhotina vinha sendo afiada há meses. Ah, como é curioso o destino das palavras. Imaginem vocês que, no domingo do segundo Brasil x Argentina, conversei com João Havelange. Estávamos na tribuna de honra do Estádio Mário Filho. O jogo ainda não começara. A dois passos de nós, tomando um café forte, estava o presidente da República. Havelange disse-me o que pareciam ser palavras eternas: — “O João vai até o fim. Não há hipótese de sua saída. E se, por acaso, ele pedir demissão, eu o impedirei, fisicamente, de sair.”
Já ensaiei uma explicação. Mas repito: — “Por quê, por quê?” O Salim Simão explica-me que Saldanha tornara-se poderoso demais. Ele, sozinho, com a sua figura folclórica, as suas broncas lendárias, os seus brios flamejantes — ele era maior do que a CBD, do que as federações, do que as forças ostensivas ou obscuras que manipulavam o nosso futebol. E as invejas, as vaidades, as frustrações, os rancores — não podiam admitir que ele fosse maior do que uma estrutura laboriosamente criada e mantida. E ainda seria muito maior e muito mais forte se voltasse com o caneco de ouro. Teria então meios de transformar a nossa realidade esportiva.
Mas vejam: — seu primeiro dever era a classificação; e ele o cumpriu. O segundo dever era a conquista do título. Parentes, figuras da imprensa, do rádio e da televisão se uniram para frustrá-lo no seu maravilhoso esforço final. Exigiram que ele se deixasse massacrar sem um gemido. Rolou a cabeça do “João Sem Medo”. E, agora, queremos mais do que nunca o caneco.
Ah, foi uma guerra suja de tantos contra um só. Guerra digna do nosso vômito.
Nelson Rodrigues para O Globo, 19/3/1970
Publicado em "A Pátria de Chuteiras", Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2013, pp. 94-97.