O sonho de um imperialismo verde

Os chamados por uma cruzada global em nome do clima têm implicações políticas graves, mas não necessariamente alteram as relações de poder da arena internacional

O sonho de um imperialismo verde
Foto de BLM Wyoming

Os chamados por uma cruzada global em nome do clima têm implicações políticas graves, mas não necessariamente alteram as relações de poder na arena internacional

Jonathan Watts, fundador e editor do portal Sumaúma, escreveu um editorial (“Nossa Voz”) intitulado “Lula tem razão: precisamos de um imposto global para os super-ricos”. O texto é a expressão de um posicionamento geopolítico mais amplo. A ideia de um imposto global para bilionários implica em um ordenamento global capaz de impor tal imposto, o que exige um horizonte programático capaz de implementar a nova ordem. Por princípio,  o autor estabelece que para o “tratamento de emergência” precisamos “derrotar as forças nacionalistas e capitalistas que procuram dividir, enfraquecer e distrair”.

Com o discurso de apocalipse iminente característico da linha editorial de sua publicação, Watts — que também é correspondente de América Latina no inglês The Guardian — desenha um campo de batalha onde o seu grupo precisa vencer, onde é preciso derrotar os inimigos e disciplinar os recalcitrantes. Os inimigos têm identidade geopolítica: os “oligarcas do gás da Rússia de Putin, os xeiques e emires de Estados ricos em petróleo no Oriente Médio e de grandes latifundiários do Brasil”. “Vencê-los é a chave para a saúde planetária”, o que o autor descreve como uma batalha sem precedentes, que estará acima das linhas divisórias do século XX, acima das ideias de esquerda e direita, pois “qualquer líder que se opuser parecerá um tirano”. 

Lembramos que, durante a Revolução Francesa, os revolucionários mais fervorosos afirmavam que aqueles alheios ao republicanismo eram tiranos à margem da humanidade, merecedores de uma punição mais severa do que as leis da guerra previam. Naquela época, agiam em nome de um ideal de soberania popular e governo representativo, o que não deixou de ter consequências graves, nem sempre previstas.

Watts, no entanto, renuncia à soberania e ao governo representativo em favor de uma definição que rotula como tiranos todos aqueles que não se alinham a um princípio ideológico específico e a uma gestão tecnocrática internacional do clima. Isto é, não podemos mais pensar no progresso de cada povo como algo baseado no seu desenvolvimento independente, pois isso seria um “desvio nacionalista” das tarefas emergenciais impostas pelo problema climático. Sendo assim, até mesmo governos representativos em sistemas eleitorais estão sujeitos a ser arrastados pela reorganização internacional do poder imaginada pelo editor da Sumaúma. 

O presidente que não se dobrar é um tirano. A vontade popular pode ser estigmatizada como populismo. Estados que desfrutam de uma riqueza que foi buscada pela humanidade nos últimos 200 anos, que usaram dessa riqueza para aprofundar sua independência, como a Rússia, são identificados como inimigos.

Ainda que Watts possa protestar que sua posição não é uma rejeição aberta ao governo representativo, não é difícil antever as consequências do seu chamado de guerra. A concretização de um imposto global contra os super-ricos implica em formas de coleta, gestão e aplicação dos recursos. A reunião de uma coalizão global contra russos, árabes e “latifundiários brasileiros” implica em uma organização decisiva que vai se confrontar com a soberania de alguns países e se baseará em decisões desligadas dos processos políticos tradicionais (sejam os mais democráticos, sejam os mais autoritários), concentradas em cúpulas transnacionais.

Na estratégia de Watts, as eleições dos Estados Unidos são um marco decisivo:

“A eleição dos Estados Unidos também teve uma virada fascinante com a ascensão de Kamala Harris – uma mulher negra com um impressionante histórico climático – como candidata a presidenta pelo Partido Democrata, contra Donald Trump, que se comprometeu com a indústria petrolífera e já recebeu financiamentos de fontes russas. Se ele ganhar, vai ser o “fim de jogo” para o clima, de acordo com o influente cientista Michael Mann. Se ela ganhar, o mundo ainda poderá ter meia chance.”

Dentro desse discurso, nós devemos depositar nossas esperanças nas eleições dos Estados Unidos, apoiando um dos candidatos em nome do programa de transformação. Atitude ideológica mais amigável e esperançosa do que a reservada aos outros atores citados no texto — árabes, russos, brasileiros e venezuelanos (também criticados pela produção de petróleo).

No fim, o projeto visionário da Sumaúma — espaço onde a identidade do Brasil é questionada em função de princípios "decoloniais" — não é tão dissidente em relação à geopolítica dos Estados Unidos.   Por coincidência ou não, a política dos Estados Unidos já está voltada contra os grandes produtores energéticos, e já vimos as consequências disso para os russos e para os árabes. Esperamos que o protecionismo instrumentalizado contra a agropecuária brasileira não tenha consequências tão drásticas para o futuro de nosso país. 

A proposta com verniz revolucionário não contradiz as tendências dominantes da geopolítica global. Apesar de todo o discurso radical, os militantes estendem as mãos aos senhores de sempre. Tudo precisa mudar para tudo permanecer igual.

Repetimos uma pergunta que ainda será feita muitas vezes: chegou a época de um imperialismo verde? 

Editorial