Cúpula do Futuro e o perigoso teatro de boas intenções
A Cúpula do Futuro é mais um exemplo dos eventos da ONU que proclamam inúmeras intenções sem apresentar mecanismos claros de execução, abrindo caminho para que ONGs avancem seus programas de influência global
A Cúpula do Futuro é mais um exemplo dos eventos da ONU que proclamam inúmeras intenções sem apresentar mecanismos claros de execução, abrindo caminho para que ONGs avancem seus programas de influência global
A Assembleia Geral da ONU nas décadas de 1970 e 1980 foi um palco importante para demandas dos países da África, Ásia e América Latina. Muitos países que haviam conquistado recentemente sua independência viam nas Nações Unidas uma plataforma para fazer reivindicações de autonomia, desenvolvimento econômico e justiça. Naquele momento, se depositaram grandes esperanças na instituição como um mecanismo onde países soberanos poderiam organizar suas reivindicações comuns.
Com a explosão das dívidas dos países em desenvolvimento na década de 1980, a mudança na correlação de forças na arena internacional após a queda da União Soviética em 1991, a multiplicação de instituições internacionais, o Consenso de Washington e o crescente unilateralismo da atuação dos Estados Unidos, essa fase de alto prestígio da Assembleia Geral sofreu um declínio. A ONU, entretanto, não deixou de cumprir um papel importante, pelo menos no imaginário ideológico.
Se antes a Assembleia Geral figurava como o centro das atenções, e com isso deixava em evidência o fato dela ser formada por várias entidades soberanas, o discurso da globalização deu uma condição especial para que a ONU aparecesse no imaginário como uma instituição com identidade própria; cresceu a ideia equivocada que de alguma forma a ONU seria um “governo global”. A voz da ONU enquanto tal passou a reverberar mais na figura de secretários-gerais carismáticos e no crescimento da burocracia associada ao corpo das Nações Unidas.
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A Cúpula do Futuro da ONU, surge como um fórum onde, superficialmente, há espaço e protagonismo para os países em desenvolvimento. A Cúpula gerou um “Pacto do Futuro” para supostamente promover sustentabilidade, paz, igualdade de gênero e justiça. Sob o verniz de um multilateralismo igualitário, a Cúpula do Futuro serve, na verdade, para reafirmar compromissos vagos que dificilmente se traduzem em ações concretas para os países em desenvolvimento. A promessa de reformas institucionais ou de maior inclusão no Conselho de Segurança, por exemplo, raramente altera as dinâmicas de poder que beneficiam as nações ricas.
Por mais que o Pacto do Futuro busque cooperação internacional em áreas importantes como a regulação da inteligência artificial, ele parece mais uma declaração de intenções que reforça o perfil institucional da ONU e os temas ideológicos que podem usar a legitimidade da comunidade internacional para arriscar as soberanias nacionais.
Durante evento do think tank Stimson Center realizado neste julho, a secretária de Estado assistente para Assuntos de Organizações Internacionais dos Estados Unidos, Michele J. Sison, falou dos objetivos dos Estados Unidos na cúpula: a promoção dos direitos humanos, em especial dos direitos das mulheres, bem como de uma maior participação da “sociedade civil” nos processos das Nações Unidas. Olaf Scholz, primeiro-ministro da Alemanha, saudou o pacto como uma “bússola”. O presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, viu a realização do pacto como um “sucesso”.
A Rússia, que foi representada pelo seu ministro das relações exteriores, Sergey Lavrov, tentou expressar uma posição dissidente, quase de boicote, que foi isolada pelos participantes da cúpula e encontrou poucos apoiadores para suas emendas no texto do pacto, que procuravam enfatizar o compromisso das Nações Unidas com os princípios de soberania e não-intervenção. “Ocorreram muitos eventos na história moderna das Nações Unidas que acabaram com declarações barulhentas que logo foram esquecidas", disse Lavrov.
Para os críticos do esvaziamento da política e da soberania, processo que ocorre em prol do poder transnacional de ONGs, é preocupante que na ausência de uma plenária envolvendo todos os países para elaborar o plano se destacou o papel das instituições da ONU e o protagonismo da assim chamada “sociedade civil” que nada mais é do que um conjunto de ONGs. O fórum “Conferência da Sociedade Civil” em maio de 2024 foi parte da agenda que culminou na Cúpula do Futuro e mostra o protagonismo cada vez maior dessas instituições, que têm fontes diversas de financiamento e são chamadas no discurso da ONU de “stakeholders”, ou “partes interessadas / afetadas” — por este caminho, ONGs indigenistas, por exemplo, se tornam representantes dos indígenas e como “partes interessadas” são, na visão de alguns, mais importantes do que considerações sobre soberania.
A Cúpula do Futuro não reverte a descentralização das decisões em prol de outras instituições internacionais, que foi uma das tendências que esvaziou a instituição da Assembleia Geral da ONU. Pelo contrário, além das ONGs, há a tendência manifesta abertamente nas posições da Alemanha de que os objetivos pregados na Cúpula serão melhor atendidos por instituições financeiras internacionais. Efetivamente, um dos mecanismos propostos para dar conteúdo prático para a cúpula é que ocorressem reuniões bi-anuais para acompanhar os objetivos do Pacto do Futuro envolvendo diretamente as instituições financeiras. Dentre os objetivos, o que o portal da ONU chamou de “turbocharge” (“turbinar”) os objetivos de desenvolvimento sustentável (ODS) e os Acordos de Paris.
Isso significa que pautas agressivas de controle da Amazônia podem encontrar um novo fórum e mecanismo de atuação no futuro, com a legitimidade do “Pacto do Futuro”.
É também preocupante que o presidente brasileiro — que estava acompanhado pela ministra Marina Silva em sua comitiva — tenha optado por um discurso que, ao falar sobre fortalecimento de instituições internacionais, flerta com mecanismos de governança global que também passariam por cima da soberania nacional dos estados independentes.
Apontamos para essas tendências ideológicas preocupantes conscientes de que, porém, o evento não é o decreto final que acabará com a soberania estatal, não pautou diretamente a subjugação da Amazônia brasileira e, tanto em suas dimensões negativas como nas positivas, não deve ter efeitos práticos, pelo menos não de imediato. No fim, cabe considerar — como outros já o fizeram — que o evento não passe de um esforço do secretário geral Antonio Guterres para deixar um grande marco do seu mandato final, que cessará em 2026.
Editorial