Um STF por dia

Marco temporal: correntes da opinião pública acostumadas a celebrar as intervenções do judiciário na política manifestaram forte descontentamento com o Supremo

Um STF por dia
Foto de Wesley Tingey / Unsplash

Inimigos do marco temporal reclamam do Supremo

O início do processo de audiências de conciliação sobre o Marco Temporal promovidas pelo STF começou no dia 5 de agosto.

A notícia não foi bem recebida por alguns setores da mídia simpatizantes de teses indigenistas. Na Carta Capital, mais associada ao campo intelectual da esquerda petista, uma coluna de opinião assinada por Felipe Milanez, Maria Rosário de Carvalho e Ernenek Mejia compara a opção do STF à ação de bandeirantes armados com espadas, destruindo vilarejos e apresentando papéis de uma falsa justiça. Dramático, mas para os autores essa comparação seria válida por estarem defendendo "um direito fundamental".

Marcelo Leite, em sua coluna na Folha de São Paulo, se pergunta se ainda existem juízes no Brasil. "O STF forçou os povos indígenas a entrar numa negociação em que só eles têm algo a perder", pois, segundo Leite, o STF estaria impondo uma negociação aos indígenas.

Nos perguntamos se, por um momento, não é contraditório pensar que um campo que, em tempos recentes, celebra o STF como bastião da constituição, e que condena aqueles que usam linguagem mais dura contra a Suprema Corte, agora também esteja a esbravejar comparações exageradas contra os ministros.

Uma hora, os fascistas são os que usam metáforas depreciativas para descrever o STF. Depois, são os antifascistas mais nobres que dizem que uma comissão de conciliação é como a ira assassina de conquistadores e que não existe juiz em Brasília.

Apesar da aparente confusão, não podemos nos apressar nas acusações: não há contradição se olharmos para a ideologia subjacente. As forças contrárias ao marco temporal que se manifestam contra a comissão de conciliação tem uma hostilidade fundamental pela atividade política, acreditam que se escorar no constitucionalismo e no Supremo Tribunal Federal é uma maneira de passar por cima das negociações e decisões da política.

Não queremos fazer insinuações sobre o "verdadeiro pensamento" dos colunistas em questão, mas atentar para as correntes em disputa. A posição subjacente é de que um judiciário iluminista pode passar por cima das resistências de uma política supostamente reacionária e atrasada. A posição segue a esteira dos que acreditam a internacionalização do direito está acima das soberanias nacionais.

E aqui não podemos ignorar as posições ambientalistas que, no Brasil, apostam na demarcação de terras indígenas como estratégia para criar zonas de redução da atividade econômica. O já citado Marcelo Leite, por exemplo, se coloca como um jornalista comprometido com as causas ambientais, que se permite chamar Lula de "viciado em petróleo" e escreveu, em 2023, que a "Mudança climática castiga eleitores de Bolsonaro no Sul".

Lembremos da argumentação do ministro Barroso sobre a atuação do judiciário na questão ambiental: as "medidas necessárias para o enfrentamentos às mudanças climáticas" são de natureza jurídica em decorrência do entendimento de que "o meio ambiente equilibrado é um direito fundamental". Por essa linha, o STF impediu que o governo contingenciasse verbas do Ministério do Meio Ambiente e das Mudanças Climáticas, pois o governo não poderia interferir na execução de compromissos de redução do desmatamento associados à protocolos internacionais como os Acordos de Paris.

A polêmica agora é de que a mera menção de um marco temporal seria uma violação de um direito fundamental dos indígenas. Eles argumentam que o uso da palavra "tradicionalmente" no Art. 231 da Constituição Federal seria uma comprovação simples e evidente da inconstitucionalidade do marco temporal, quando o artigo em questão diz "terras que tradicionalmente ocupam", no presente do indicativo, o que é reforçado no inciso primeiro, que explica o que são terras "tradicionalmente ocupadas pelos índios" como aquelas "por eles habitadas em caráter permanente".

Os inimigos mais ávidos do marco temporal são aqueles que ignoram a evolução histórica do Brasil como um país multiétnico em prol do slogan "Brasil é terra indígena". Eles não se contentam e não se desestimulam com o exemplo terrível de Raposa Serra do Sol.

Os colunistas e professores que atacam o STF por estabelecer uma comissão de conciliação sobre o marco temporal, recorrem ao que consideram uma coerência racional, acreditam em uma resolução no plano das ideias, mas ao olhar para o céu de seus ideais, se esquecem da terra onde cresce o Brasil. Se esquecem da realidade política conflitiva e espinhosa que se apresenta na problemática do marco temporal.

O parlamento deu uma posição majoritária; se a lei do marco temporal não passou pelo crivo do controle constitucional da parte do STF, ela ainda expressa uma posição política importante que não pode ser ignorada. Mais do que isso, para além das altas cúpulas da política nacional e os desequilíbrios entre os poderes, existem conflitos que se arrastam no interior do Brasil, com potencial de consequências devastadoras. Trabalhadores brasileiros que foram para a Amazônia para trabalhar a terra ou construir estradas, muitas vezes com promessas do governo canalizadas pelo INCRA, têm seu modo de vida ameaçado. Proprietários de terras adquiridas legitimamente veem sua propriedade ameaçada não pela presença de indígenas "que ali habitavam de forma permanente", mas por movimentos políticos adeptos de um nacionalismo indigenista.

Vejam a situação atual no Oeste do Paraná, em Guaíra e Terra Roxa, por exemplo, onde se ensaiam confrontos violentos entre militantes e produtores. A condução política irresponsável estimula que movimentos, muitas vezes financiados por ONGs estrangeiras, mobilizem pessoas de outras partes do país para participar de ocupações reivindicando terras que já estão há muito tempo reguladas por um regime jurídico de propriedade.

Em Roraima, os militantes do CIR receberam a embaixadora da União Europeia como uma aliada política, manifestando indiferença para com as nossas fronteiras nacionais. Edinho, líder do CIR em uma comunidade do Pium, colocou a preocupação de ampliação do seu território como superior às preocupações com saúde, educação e outros serviços básicos, quando efetivamente Roraima é um dos estados com piores indicadores sociais do Brasil, e esses indicadores são ainda piores quando concentrados na população indígena.

Quando esses movimentos logram resultados, criam uma área com uma população politica e economicamente dependente, onde o Estado brasileiro enfrenta dificuldades para trabalhar. No Chile, onde o nacionalismo indigenista avançou com mais força (até mesmo na forma de ações paramilitares), vimos o desastre das fantasias separatistas durante a pandemia, pois uma parte do país não poderia sobreviver sem as outras, o contrário do que diziam os demagogos que se apresentavam como campeões dos direitos fundamentais dos indígenas.

Os que estão interessados em fragmentar o Brasil vão usar qualquer coisa para justificar o enfraquecimento de nosso estado e a redução da nossa produção. Não devemos renunciar ao reconhecimento dos direitos indígenas, mas não podemos ser dogmáticos que querem impor as fantasias da razão sem mediar e resolver os conflitos que se impõem na realidade.

Todos brasileiros têm direito à terra, trabalho, pão, dignidade e soberania nacional. O Supremo não está brincando com os índios, apenas está tentando manipular com um pouco mais de cuidado o barril de pólvora que foi plantado no Brasil. Se os inimigos do marco temporal não entendem isso e atacam o STF, ao mesmo tempo que são eles que querem judicializar a maioria das questões políticas levando-as para o Supremo, vamos precisar de um STF para cada dia da semana.

Editorial